FUI RECEBIDO POR UMA COBRA
Cheguei na rodoviária de Salvador, chamei o aplicativo de viagem e desci no ponto de encontro, onde fui recebido imediatamente pelos anfitriões da casa e do quarto em que passaria a morar na Bahia.
No exato momento em que entrei na casa, uma cobra jiboia foi capturada no quintal circundado por mata ainda nativa por Arnaldo (nome fictício), o dono da casa e chefe da família que me receberia naquele momento. Arnaldo dominou a cobra pelas mãos e me perguntou
- Quer ir comigo soltá-la lá em baixo, numa área de mata?
- Mas é claro!
E fomos nós dois, absolutamente desconhecidos, descendo a ladeira, em baixo de uma eterna chuva que cai em Salvador. Chegamos em frente ao zoológico e Arnaldo sugeriu deixar a cobra lá, no Zoo, quando o segurança nos olhou e retrucou
- Assim tu me quebra!
- Tudo bem então – respondeu Arnaldo.
Continuamos descendo e chegamos na frente de um muro, que é ao lado da faculdade de veterinária da universidade, e Arnaldo gentilmente depositou o selvagem animal em cima da parede e ela, a cobra, desapareceu entre os verdes que avançavam além dos limites do concreto.
- Vamos passar ali pelas três gordinhas, pegar a orla, circundar a mata por fora e subir pela comunidade? Quero te mostrar o caminho.
- Bora!
Assim, tudo completamente instantâneo, imediato. Uma relação forjada pelo momento do agora.
- Como meu filho? Uma cobra? Uma cobra de verdade, mesmo?
- Sim mãe, uma cobra, uma cobra de verdade mesmo, mas não é venenosa não, só come galinhas, pintinhos, ratos, etc.
- Mas nunca que eu ficaria numa casa que tem cobra!
- Mas foi interessante! Até encostei nela...
Todas as pessoas que mencionei ou que viram as fotos e vídeos com a cobra demonstraram seu temor, seu medo, como se maus auspícios me esperassem. Certamente a cobra é o animal que carrega o pior simbolismo entre os humanos do Ocidente, resultado da imagem forjada pela visão bíblica do pecado original, da corrupção moral, do rastejar, da falsidade, da picada, do veneno...
Não carrego este medo.
Não carreguei este medo, eu acho.
Olhei para a cobra com o espanto e a curiosidade genuína de ser recebido pela força da natureza e sua vontade eterna de sobrevivência.
Salvador e o Rio de Janeiro são cidades com muitas semelhanças. Há o mar, a orla, as montanhas, o clima... Há, porém e principalmente, as aproximações culturais, uma sinergia dos povos. As duas cidades mais negras do país, com maior formação africana. O samba talvez seja a principal conexão entre elas. Seus habitantes falam português brasileiro com musicalidades distintas, seus territórios foram construídos no suor e na labuta do povo trabalhador.
- O que tu faz?
- Sou sociólogo, professor, e você?
- Sou PM aposentado.
- Ah...
Esta troca rápida de frases expôs uma montanha gigantesca de diferenças, símbolos, crenças, valores em menos de dois segund...
- Quer dar uma volta ali no Rio Vermelho?
- Bo... Bora!
Depois de poucas cervejas, alguns assuntos puxados por mim, música em alto volume, petisco, pautas desconexas e alguns conselhos recebidos, voltamos pra casa.
- Foi boa a caminhada, curti ir lá com voc... O que é isso que você tá tirando da cin...
- Ah, é minha bichinha, sempre ando com ela.
Era uma pistola prateada, que ele tirou por baixo da camisa, e disse andar sempre com ela. Não tive reação. Tive medo, mas... Procurei não demonstrar.
- Amanhã vamos fazer uma caminhada lá na Barra?
- Vamos!
Na manhã seguinte à minha chegada, ao acordar, recebo a notícia:
- Arnaldo achou outra cobra!
(continua...)
V.F.S.
25/06/25
Dicas de livros com “não tão belas” e “esperadas” recepções:
A Casa dos Espíritos de Isabel Allende;
O Conto da Aia de Margaret Atwood;
O Cortiço de Aluísio Azevedo.
Dica de filme bom e também desconfortável pacas:
Cabo do Medo de Martin Scorsese (1991).
Sensacional, Vini!
Vou acompanhar essa novela! Certeza!
Obrigado! Espero que ela divirta e inspire 🥰